A Gamificação na aprendizagem musical e os desafios de se ensinar uma geração digital

Quando inicio o ano letivo, gosto de realizar uma pequena entrevista com os novos alunos. Essa “anamnese” me ajuda a conhecê-los melhor e adaptar minhas práticas de ensino. Uma das perguntas é: “O que você faz no seu tempo livre?”.

Ultimamente as respostas têm sido tão unânimes que já começo a escrevê-las antes mesmo de o aluno falar: “gosto de ficar no celular, no computador ou no iPad, assistindo a vídeos e, principalmente, JOGANDO”. Sim! Essa geração passa mesmo muito tempo na frente das telas. Diferente de mim, que vivi a infância na década de 1980 colecionando papéis de carta e brincando de bambolê, eles já nasceram digitais, no mundo instantâneo e líquido de Bauman.

Neste contexto, a revolução tecnológica avança em tempo presto prestíssimo e parece engolir as estratégias pedagógicas. A sensação é de que estamos sempre um passo atrás, e tudo vai ficando ultrapassado e obsoleto muito rapidamente.

Por favor, não me entenda mal! Beethoven e Villa-Lobos são atemporais, mas há uma urgência latente em mudar o jeito de como ensinar essa garotada a fazer as músicas desses grandes mestres. Esse é, sem dúvida, um grande desafio para qualquer educador musical.

Bem, já que eles passam boa parte do seu tempo jogando, que tal gamificar?

A Gamificação ou Gamification é um termo que ganhou popularidade há cerca de 10 anos por meio de Karl M. Kapp, no livro The Gamification of Learning and Instruction: Game-based Methods and Strategies for Training and Education (em tradução livre, A Gamificação da Aprendizagem e Instrução: Métodos baseados em jogos e estratégias para treinamento e educação).

Foi bem definida por ele como sendo “o uso das mecânicas baseadas em jogos, da sua estética e lógica para engajar as pessoas, motivar ações, promover a aprendizagem e resolver problemas”. É tomar emprestado elementos de jogos e aplicá-los em outros contexto para motivar, engajar e resolver problemas de forma divertida.

A Gamificação tende a ser uma das grandes apostas da educação no século XXI, com vários casos de sucesso como a Quest to Learn, ou Q2L, uma escola pública de Nova York, a primeira com um currículo baseado em jogos; a plataforma Khan Academy e o aplicativo DuoLingo, só para citar alguns exemplos.

Todos eles tentam promover um ambiente mais atraente e produtivo, no qual o aluno se envolve de forma ativa no processo de aprendizagem e consegue atingir um estágio de Flow, do inglês “fluxo”, como definido pela teoria de Mihaly, um estado mental de foco absoluto.

No âmbito musical, existe uma crescente produção de materiais e recursos que visam atender a essa demanda. Há algumas lojas do segmento aqui no Brasil, bem como profissionais autônomos dedicando-se à criação de jogos de tabuleiro, cartas e flashcards. E há, é claro, uma quantidade já bem expressiva de Apps, aplicativos de celular, tablete ou iPad, nos quais se pode trabalhar diversos elementos musicais, principalmente de leitura.

Isso significa que é só incluir jogos nas aulas de música e está tudo resolvido? Bem, se o seu objetivo é conseguir motivação extrínseca de curto prazo, talvez a resposta seja sim, mas, se a meta for cativar esse aluno da geração digital e fazê-lo se envolver numa atividade que requer esforço e dedicação, como o aprendizado musical, talvez seja necessário estruturar melhor essa ferramenta.

Primeiro, é preciso ter um objetivo que dá significado ao jogo e que faça sentido para os participantes. Nesse caso, o professor deve selecionar jogos que trabalhem os elementos musicais, que ensinem ou reforcem os conteúdos dados em aula. Segundo, o jogo deve ter regras ou limites. Terceiro, a participação deve ser voluntária, de forma que todos compreendam as regras e decidam segui-las espontaneamente. Quarto, precisa ser desafiador na medida certa: nem difícil demais para não frustrar o aluno, nem tão fácil a ponto de entediá-lo.  Por último, o feedback deve ser constante, ou seja, o jogo precisa dar sinais a todo momento de como o aluno está indo, sem que seja necessário terminar uma partida para acessar essa informação. Isso significa criar um ambiente em que há espaço para o erro e que isso seja visto como algo positivo, uma vez que ajuda o aluno a aperfeiçoar suas habilidades e competências.

Ainda existe um outro viés pelo qual a Gamification pode entrar na aula de música, dessa vez, sem usar um material pronto, mas através de dinâmicas que ofereçam aos alunos a experiência do jogo em si. Nesse caso, o professor pode criar projetos, missões ou desafios de estudo que podem funcionar como um combustível, especialmente para as crianças que ainda não desenvolveram a motivação intrínseca.

Dessa abordagem podem emergir diversos pontos positivos, como despertar o interesse, aumentar a participação, desenvolver a criatividade para resolver problemas e a autonomia. No entanto, é preciso tomar muito cuidado para não colocar ênfase nas premiações, o que desvirtuaria o trabalho.

O Santo Graal da Gamificação no ensino musical seria que o aluno se sentisse motivado a aprender a fazer música em primeiro lugar, ou a satisfação de vencer um desafio, de se sentir capaz e, principalmente, de encontrar alegria ao longo do processo num mundo onde tudo acontece na velocidade de um clique!

Então, voltando ao questionário para os alunos novos, talvez da próxima vez eu simplesmente pergunte: “Vamos jogar?”.