Bruno de Sá

Aos 28 anos, o sopranista detentor de uma voz raríssima e do Grande Prêmio de Voz masculina no 14º Concurso Maria Callas, fala sobre a sua trajetória, a transição de instrumentista para cantor, a singularidade de sua classificação vocal e os cuidados que mantém para preservar a voz.

CONCERTISTA: Sua voz é classificada como sopranista. Isso significa que você alcança a mesma extensão vocal de uma soprano?
Bruno de Sá: Sim, porém existem especificidades e também características que a diferem de outras classificações vocais para vozes masculinas.

No primeiro semestre da graduação em canto, tive a oportunidade de participar de uma MasterClass com o renomado cravista Nicolau de Figueiredo cantando Amarilli, mia bela, de G. Caccini. Foi Nicolau quem primeiramente me classificou como sopranista. Sua vasta experiência como especialista e professor de Música Antiga na Europa deram-lhe respaldo técnico para tal afirmação. Nicolau trabalhou com intérpretes de referência na Música Antiga como Andreas Scholl e Philippe Jaroussky e também foi, durante muitos anos, assistente do maestro e contratenor René Jacobs. Ele foi muito categórico em afirmar que há diferenças entre a minha voz e a desses relevantes cantores, fazendo com que eu não viesse a ser um contratenor. Ainda naquele ano, tive oportunidade de cantar para outros maestros e especialistas em canto e todos foram unânimes em dizer que, de fato, eu não era um contratenor.

Também somos chamados de Castrati Naturais, sopranista, cantori evirati, falsettist naturali, musici ou male soprano. São os mais raros, havendo poucos cantores espalhados pelo mundo. Um sopranista é um cantor que alcança o registro vocal do soprano, assemelhando-se em timbre, extensão, potência e notas de passagem. É diferente de um contratenor, que treina sua voz para usar o máximo de suas pregas vocais produzindo sons agudos. O sopranista usa menos a parte grave de suas pregas vocais – desse modo, permite o acesso a um registro agudo com maior eficácia e alcance que os contratenores. Desde então, tenho focado meus estudos como sopranista. Nesse processo, juntamente com meus professores, descobrimos características que confirmam tal classificação como:

Minha extensão atual está ente o Bb1 – E5, porém a tessitura está situada em G2 – D5.
Todas as regiões de passagem (primo passagio e seconda passagio) são idênticas às de um soprano.

Ainda que haja a presença de um registro grave considerável, ele não tem a impedância, o brilho e as qualidades necessários para “furar” uma orquestra, por exemplo. Assim como ocorre com a maioria dos sopranos, cantar nessa região (notas abaixo de C3), além de ser desconfortável, é cansativo vocalmente.

A variedade de possibilidades timbrísticas e de dinâmicas é diferente da de um contratenor. A sonoridade se distingue completamente, assemelhando-se à de um soprano e possibilitando, por exemplo, no ambiente coral, cantar com o naipe de soprano.

O meu Trabalho de Conclusão de Curso na USP, intitulado Vozes agudas masculinas, dentre os diversos assuntos pesquisados, traz algumas definições diferenciando as vozes de contratenores, sopranistas e falsetistas, já que a classificação vocal é importante para o cantor lírico, auxiliando-o na delimitação de sua tessitura e na escolha do tipo de repertório que poderá ser interpretado ao longo de sua carreira.

Entender a voz de um sopranista é também compreender a voz do contratenor. Apesar de ambos cantarem registros mais agudos, há grandes diferenças. Contratenor são homens adultos com voz falada de tenor ou barítono/baixo, que usam uma técnica vocal de falsete para cantar partes de contralto (alto) ou soprano. Realizam um treino intenso para controlá-lo e fortalecê-lo, adquirindo um equilíbrio na zona di passagie. Os contratenores são cantores que também podem atuar utilizando o registro modal, cantando como baixos, barítonos e tenores.

Existe um vasto repertório escrito para sopranista o qual foi composto no período de supremacia dos castrati, podendo ser executado tanto por contratenores, sopranistas, sopranos como também mezzosopranos. Há também a possibilidade de se excecutar personagens masculinos, que atualmente são cantados por mulheres e vão além do período barroco, por exemplo, Oscar, de Un ballo in maschera, de Verdi, e Romeo, de Capuleti e i Montecchi, de V. Bellini.

CONCERTISTA: Antes de dedicar-se ao canto, você estudou piano, flauta transversal e clarinete. Técnica e musicalmente, como foi a transição do instrumentista para o cantor?
Bruno de Sá: Bem, falar acerca dessa transformação é, ao mesmo tempo, relembrar minha trajetória até aqui. A música sempre esteve presente em minha vida. Desde a tenra infância, fui exposto a ambientes musicais que me estimularam e contribuíram na minha formação. Os meus pais, antes mesmo do meu nascimento, já cantavam em coros de igreja, ou seja, eu tinha em casa e em nossos círculos sociais referências vocais que, na época, eram consideradas de boa qualidade.

Além dos meus pais, meus tios, tanto maternos quanto paternos, também cantavam, fazendo com que o ambiente familiar em que eu estava inserido fosse muito musical. A minha primeira performance em público foi aos dois anos de idade, quando, espontaneamente, manifestei o desejo de cantar uma canção na igreja que frequentava na qual, com ajuda da minha mãe, solei uma canção até o fim. Lembro-me, inclusive, de ela me segurando em cima de um banquinho para alcançar o microfone que ficava preso em um pedestal. Desde então, não parei de cantar.

Participei de coros infantis e infanto-juvenis e, já nessa época, minha voz demonstrava uma tendência e facilidade com as notas agudas, ainda que a principal característica da voz infantil seja o registro agudo. Aos sete anos, ingressei em um curso de piano, foi quanto comecei a aprender teoria musical. Aos dez, depois de tanto insistir com meus pais, saí das aulas de piano e passei a estudar clarineta. Cheguei a tocar por quatro anos na orquestra dessa mesma igreja que frequentava. Paralelamente à prática instrumental, estava o canto. Durante todo esse período, continuei cantando nos coros infantis e infanto-juvenis, tendo a oportunidade de solar à frente destes.

Ao completar quatorze anos, minha família se mudou para Ibitinga, uma pacata cidade no interior do estado de São Paulo. Por não conhecer nenhuma banda ou orquestra e pela ausência de professor de instrumento na cidade, parei de tocar clarinete, porém continuei cantando por hobby, e foi nesse período que passei pela muda vocal, que foi muito sutil.

Durante a preparação para o vestibular de Licenciatura em Música, iniciei os estudos na flauta transversal. Por já possuir experiência com o clarinete, o desenvolvimento na flauta se deu de modo rápido. Até o momento, não pensava em seguir carreira como cantor, muito menos como performer, porém seguia cantando. Ao ingressar no curso de Licenciatura Plena em Música na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar –,também entrei para a Orquestra Experimental da UFSCar, podendo me desenvolver um pouco mais como instrumentista.

Paralelamente às minhas atividades na Orquestra, na qual cheguei a trabalhar como estagiário, vinculei-me ao Vivo Canto (Laboratório Coral da UFSCar), onde, dentre outras atividades, pude iniciar os estudos na área vocal, tendo aulas coletivas de canto.

A Profª. Drª. Jane Borges de Oliveira Santos, responsável pelo Laboratório, regente do coro e orientadora do meu Trabalho de Conclusão de Curso, percebeu que, de fato, eu tinha uma facilidade com agudos, alcançando o registro feminino, e cujo material vocal poderia ser explorado. Foi quando me convidou para uma visita à Universidade de São Paulo – USP –, a fim de que os professores dessa instituição me ouvissem e, com a vasta experiência deles, pudessem me orientar quanto aos estudos futuros. Nesse dia, tive o meu primeiro contato com o professor Francisco Campos Neto, que se tornaria o meu professor de canto, realizando todo o trabalho de técnica vocal. Sendo assim, eu me graduei em 2011 na UFSCar e, após um ano de preparação, ingressei no Bacharelado em Canto Erudito e Arte Lírica pela USP em 2013, justamente na classe do “Chico Campos”. Passei, então, a me dedicar exclusivamente à arte do canto.

Ou seja, a transição ocorreu muito naturalmente, já que, durante todo esse tempo, canto e instrumento andaram juntos. Antes mesmo de me afirmar como cantor, eu já dizia uma frase brincando: “Me dê qualquer coisa para cantar, que eu canto; mas não me dê qualquer coisa para tocar, pois eu não sou capaz.”

Musicalmente está tudo conectado e todos os conhecimentos são utilizados tanto por instrumentistas quanto cantores, já que todos somos musicistas. No âmbito técnico, foi preciso simplesmente me dedicar em tempo integral à carreira de cantor, descobrindo quais áreas estavam em déficit e trabalhar para compensar e/ou adquirir tal conhecimento. Pude ter aulas de fonética aplicada ao canto nos principais idiomas utilizados no contexto lírico, aulas de teatro, consciência, controle e expressão corporal, masterclasses, enfim, tudo relacionado ao canto e suas peculiaridades.

CONCERTISTA: A voz é um instrumento complexo, que exige atenção aos mínimos detalhes. Quais os cuidados que você adota para preservá-la?
Bruno de Sá: Sim, de fato, a voz é um dos instrumentos mais complexos de todos, se não for o mais. É diferente do piano ou qualquer outro instrumento com o qual existe uma relação e uma interação do instrumentista para produzir som e música, ou seja, ele vê e, literalmente, toca o instrumento. No caso do canto, não há essa relação, ou melhor, há, no entanto, de forma diferente, ainda mais intensa, já que o próprio instrumentista é o instrumento.

E nós não vemos tudo o que ocorre lá dentro durante o momento do canto, então precisamos desenvolver alto nível de percepção e controle corporal . Essa percepção também nos auxilia no cuidado com o nosso instrumento (corpo/voz).

Cada corpo é diferente e tem suas especificidades, ou seja, cada cantor acaba desenvolvendo seus próprios cuidados e “manias”, evitando aquilo que individualmente lhe é nocivo. Eu, por exemplo, não saio de casa sem cachecol/lenço e guarda-chuva, temo resfriados e dores de garganta.

A vida de um cantor, muitas vezes, é cercada por sacrifícios e renúncias. Se a corda do violão quebra, o instrumentista pode trocar, mas e o cantor? Não temos como trocar nossas pregas vocais! Ou seja, alguns danos podem ser irreversíveis, e a prevenção e o cuidado contínuo são necessários: desde acompanhamento médico a cuidados com minha alimentação. Por exemplo, para que eu não venha a sofrer de refluxo gástrico, eu não tomo leite nem café, não como fritura, não faço uso de bebida alcoólica e por aí vai uma lista imensa… de tudo que envolve a melhora do corpo e, consequentemente, a melhora a saúde vocal: horas regradas de sono, exercícios físicos, descanso vocal, nebulização, etc.

Outro cuidado importante é com a rotina de estudo. Não podemos cantar além do que a musculatura permite e precisamos respeitar o tempo de descanso vocal. Além dos exercícios vocais diários, minha rotina de estudos necessita ser efetiva e eficaz para não sofrer fadiga vocal e, ao mesmo tempo, ter controle técnico e flexibilidade vocal, mantendo, assim, minha voz saudável e “fresca”, jovem.
 
CONCERTISTA: Você canta obras compostas para castrati na tonalidade original, pretende gravá-las? Seria interessante ouvi-las na voz de um sopranista.
Bruno de Sá: Olha, seria um imenso prazer poder gravar essas árias, ou até mesmo realizar uma série de concertos com a temática Castrati. Tive a oportunidade de realizar algo semelhante no ano passado, durante o XX Festival de Ópera de Manaus. Sob a regência de Marcelo de Jesus, fizemos o concerto O Triunfo da Voz ou A Extravagância da Arte (Música dedicada a Farinelli).

Até o presente momento, infelizmente, não tenho nenhum projeto de gravação, porém estou completamente aberto a convites. Para mim, seria uma grande honra registrar essas obras. Além do desafio vocal, é um enorme aprendizado executar esse repertório, que deixa evidente tanto a genialidade do compositor quanto o virtuosismo do cantor.


Publicado na 3ª edição da revista CONCERTISTA.