Luis Otavio Santos

A música erudita foi impactada por grandes revoluções no século XX. Do dodecafonismo de Arnold Schoenberg (1874 – 1951) aos experimentos radicais de John Cage (1912 – 1992), foram muitas as transformações que abalaram a estrutura musical baseada no sistema tonal. Entretanto, uma outra revolução, menos ruidosa, porém não menos importante, deu novos rumos para a interpretação musical e inaugurou um novo e fascinante capítulo na história da música.

Quando a cortina que encobria séculos de uma densa produção musical foi erguida, uma civilização musical desconhecida foi revelada. Os ainda desconhecidos músicos antigos haviam acendido o pavio que detonaria uma das mais empolgantes jornadas musicais do século passado. A Música Antiga ateou fogo na cena musical européia e, num curto período de tempo, conquistaria os corações e as mentes de uma legião de músicos ao redor do mundo.

A revolução da Música Antiga chegou ao Brasil e encontrou no violinista e regente Luis Otávio Santos um expoente com o talento, a sensibilidade e o intelecto necessários para florescer. A trajetória desse artista começou na cidade mineira de Juiz de Fora, em uma família de músicos (fundadores do Centro Cultural Pró Música). O piano foi o primeiro instrumento, aos 4 anos; aos 7, empunhou o violino. Na adolescência, por orientação dos irmãos, passou a se dedicar ao violino barroco e à música antiga. Aos 17 anos, foi estudar no Koninklijk Conservatorium de Haia, e mergulhou nos estudos da música historicamente orientada. Na Europa, conquistou a reputação de virtuose e, com apenas 18 anos, foi um dos principais solistas da La Petite Bande, prestigiada orquestra de música antiga. Nessa entrevista, Luis Otavio revela seu olhar moderno sobre o passado musical.

CONCERTISTA: O repertório denominado Música Antiga inclui obras de quais períodos da história da música?
Luis Otavio Santos: A gente pode chamar de Música Antiga qualquer período em que haja uma defasagem cultural em relação a hoje em dia, porque o tempo passa, o gosto muda, as formas de tocar mudam também e o que a gente chama de Música Antiga é justamente reavaliar e recolocar essas obras de arte, essas obras musicais dentro do contexto mais próprio a elas. Não seria a gente falar de viagem no tempo ou de questões mais corretas, nada disso. É uma necessidade estilística, artística que surge da convicção de que essas obras respiram, vivem de uma forma mais brilhante, mais vívida quando olhadas com esse olhar histórico. Nesse sentido, até mesmo obras do início do século XX merecem ser recontextualizadas. Algumas como A Sagração da Primavera ou As Sinfonias de Mahler sofreram uma transformação na interpretação ao longo do século XX. Elas foram também, de uma certa forma, deturpadas em relação ao que foi feito na época em que elas foram executadas. Entretanto, quando se fala de um repertório muito distante do nosso tempo, essa convicção é irrefutável. A música renascentista, a música barroca e a música do Classicismo, por exemplo, são, sem dúvida, muito distantes do nosso gosto musical corrente nas salas de concerto. Então, isso envolve realmente uma reavaliação e uma reconstrução do músico no que se refere à forma de tocar e à forma de ler a partitura.

CONCERTISTA: Temos, no Brasil, obras que podem ser classificadas como Música Antiga?
Luis Otavio Santos: Com certeza, temos. Por exemplo, as obras feitas no período colonial ou no período do Império estão dentro dessa estética, dentro desse gosto musical que também foi interrompido. São peças que estão presas ao que se chama de Ancien Règime, que é um gosto musical que necessita realmente de outros instrumentos, outra leitura e outra interpretação. Então, todo esse repertório da Colônia e do Império é muito mais bonito e muito mais vivo quando interpretado sob o ponto de vista histórico.

CONCERTISTA: Além do domínio dos instrumentos de época, quais outras disciplinas são necessárias para interpretar essa música?
Luis Otavio Santos: É necessário um estudo de história da música muito bem aprofundado, reformulado, porque a história da música segue um cânone oriundo do século XIX, período romântico. Então, todo olhar historicista passa por essa ótica romântica. Por isso, é preciso reestudar a história da música de uma forma mais moderna, ou seja, entender mais sobre os períodos e o gosto musical de cada época. Mesmo porque a teoria musical se transformou muito com o tempo; logo, a gente precisa reaprender o código de notação de cada época, o qual não é o mesmo. Pode-se imaginar que as partituras eram anotadas, registradas da mesma maneira ao longo dos séculos, mas isso não é verdade. A gente tem de reaprender a ler partitura de acordo com cada época para se conseguir entender a mensagem do compositor e, a partir daí, utilizando instrumentos de época adequados, obtemos um resultado que se aproxima da ideia musical, da invenção artística do compositor.

“O que chamamos de ‘Música Antiga’ é justamente reavaliar e recolocar essas obras de arte, essas obras musicais dentro do contexto mais próprio a elas.”

Luis Otavio Santos

CONCERTISTA: Em março deste ano, você dirigiu a Paixão Segundo São João, BWV 245, de Bach, com o grupo de câmara Os Músicos de Capella. Por que escolheu interpretar a obra com uma formação camerística?
Luis Otavio Santos: Em primeiro lugar, é importante dizer que essas obras eram executadas em formações camerísticas. É uma prova de que o gosto musical se transformou ao longo do tempo a ponto de acontecer uma distorção absurda de, por exemplo, As Paixões, os Oratórios de Händel serem executadas com uma estética das Sinfonias de Mahler, das sinfonias Bruckner com grandes formações, coros enormes e orquestras gigantescas. Isso é extremamente inadequado para essas peças que vivem de uma transparência. No caso de As Paixões de Bach, com todo aquele contraponto, aquela malha intricada e muito detalhista, se executada com instrumentos de época e formações menores, ao contrário do que se imagina, a gente não ouve menos e se frustra com menos som, mas, sim, com muito mais detalhe, mais vívida e intensa, porque não só os músicos têm mais iniciativa e mais responsabilidade, como também a partitura respira de uma forma muito mais solta e intensa. Temos esse princípio no Barroco, da música teatral, da retórica, de personagens no palco que atuam de uma forma muito clara, ao contrário de uma massa disforme que anula o músico em prol de uma coletividade.

CONCERTISTA: Em 2005, você recebeu o Diapason D’Or pela gravação das Sonatas para violino, de Jean-Marie Leclair (1697 – 1764), considerado o pai da escola francesa de violino. Gostaria que comentasse sobre as características técnicas e musicais dessas obras.
Luis Otavio Santos: Eu gosto muito do repertório francês para violino, o qual esteve, durante muito tempo, eclipsado, fora do repertório tradicional do violino, justamente porque é uma linguagem musical que está muito presa ao instrumento de época, ao violino barroco, ou seja, é um tipo de música que realmente só consegue surtir efeito e fazer sentido quando interpretado com esse instrumento. Então, eu me encontro em casa, essa é realmente a minha praia todo o repertório específico para violino barroco. Eu tenho um carinho muito grande, porque, quando a gente apresenta essas peças, dá aquele famoso efeito do velho-novo: obras antiquíssimas que soam como novidade, música inédita e inusitada para o público de hoje, por trazerem de volta uma sonoridade, uma forma de tocar, que é, aparentemente, uma novidade.

Escolham bem os seus exemplos, porque a maior parte do aprendizado é feito disto: do exemplo, do bom exemplo.”

Luis Otavio Santos

CONCERTISTA: Sua discografia possui a impressionante marca de 70 CD´s. Como se prepara para uma gravação? O registro do repertório antigo tem algumas particularidades em relação ao repertório de outros períodos?
Luis Otavio Santos: Minha discografia é longa porque minha carreira já é bastante longa também, eu participo de gravações com grupos europeus desde 1992. Algumas delas são premiadas, várias com grupos de formação camerística, outras como solista e outras como solo. Faz parte do ofício que o músico esteja pronto tanto para se apresentar em público como também para registrar essas apresentações em CD e gravações. Por isso, eu não faço muita distinção entre uma coisa e outra. Tudo se resume ao estudo constante, ao aprofundamento e ao grande respeito pela profissão.

CONCERTISTA: Quais obras considera importantes para a formação técnica e musical do instrumentista ou cantor que busca se especializar na interpretação da Música Antiga?
Luis Otavio Santos: Temos os incontornáveis. Bach é realmente o centro, não só do repertório da Música Antiga, mas também de todo o repertório da música ocidental. É uma música que estará sempre em um patamar que a gente nunca alcança, no sentido de perfeição, complexidade, compreensão, assimilação de tanta beleza. Portanto, a música de Bach é um objetivo inicial e final. À parte disso, tem, para os cantores, por exemplo, a obra vocal de Monteverdi, crucial para entender a linguagem do cantar recitando, como era chamado à época, da música retórica, declamada. Para os instrumentistas, a música de Mozart é indispensável em termos de perfeição, apuro, aprimoramento técnico. Ninguém como Mozart para colocar tudo em evidência e notar se a técnica está realmente perfeita ou não. Enfim, todo o repertório italiano e francês para se compreender a diferença entre os dois estilos mais importantes do Barroco, os quais têm características bem distintas em relação à ornamentação, ao fraseado, ao equilíbrio sonoro. É preciso entender muito bem os dois mundos.

“Cada dia é um novo dia e podemos perder todas as nossas habilidades se não tivermos respeito pelo próprio trabalho constante e diário.”

Luis Otavio Santos

CONCERTISTA: O Núcleo de Música Antiga da EMESP é o principal centro de estudos dessa música no país. Em 2018, serão completados 10 anos. Qual o balanço que você faz da primeira década do curso?
Luis Otavio Santos: O Núcleo de Música Antiga é um projeto muito querido. Nosso grupo de professores se manteve inalterado durante todo esse tempo, é uma equipe de oito professores. Montamos uma grade curricular única no país, em que os alunos não têm somente aulas de um instrumento, o que já seria uma vitória ter dentro de uma escola de música. É muito raro. Existem poucas escolas no Brasil que têm essa situação de ter um instrumento de época. Algumas universidades têm curso de cravo, outras de flauta doce, porém um núcleo assim com uma equipe e uma grade curricular específica é realmente o único no país. Os alunos têm aula de baixo contínuo, análise barroca, música de câmera evidentemente, terminologia de época. Então, a gente cria um ambiente mesmo, tem uma comunidade, em torno de 40 alunos, o que é um sucesso enorme. Para um movimento de Música Antiga, essa quantidade de alunos é muito grande, é um recorde. O balanço que a gente faz nessa primeira década não é só de sobrevivência, o que é muito importante num Brasil onde tudo se deteriora, a gente tem vindo numa crescente, porque o número de alunos aumenta a cada ano. Conseguimos manter vivos projetos, como festivais, orquestra barroca, madrigais, grupos estáveis dos alunos. Vários alunos já foram para a Europa, admitidos em escolas renomadas graças à base que fornecemos aqui, algo que não existia antes. Só havia iniciativas quixotescas isoladas da parte de quem era interessado. Agora o nosso curso oferece essa base.

CONCERTISTA: Você é um músico reconhecido internacionalmente, dirigiu grupos renomados e realizou turnês em vários países. Gostaria que deixasse uma mensagem para os estudantes que sonham em seguir o mesmo caminho.
Luis Otavio Santos: O que eu tenho a dizer para os estudantes é um clichê que ouvi dos grandes mestres e pioneiros com quem tive oportunidade de trabalhar e estudar. Eles, que têm uma vasta experiência, resumiam muito da conversa na simplicidade da vida do músico de estudar, estudar e estudar e em ter a seriedade do ofício do músico, cuja profissão é nobre e muito árdua, porque ela requer de nós uma manutenção constante. Nunca nada é garantido. Cada dia é um novo dia e a gente pode perder todas as nossas habilidades se não tivermos respeito pelo próprio trabalho constante e diário. E eu diria também para os estudantes que escolham bem os seus mestres. Isso é muito importante. Abram os olhos para as coisas que estão ao lado, ou às vezes bem diante do nariz. Escolham bem os seus exemplos, porque a maior parte do aprendizado é feito disto: do exemplo, do bom exemplo.


Publicado na 2ª edição da revista CONCERTISTA