Quarteto Radamés Gnatalli

Os músicos do Quarteto Radamés Gnattali tem um gosto especial por projetos com um alto grau de dedicação e esforço. Desafios de grande envergadura e complexidade técnica e musical são uma constante na carreira deste prestigiado grupo. Graças a esses projetos podemos ouvir a obra completa para quarteto de cordas de Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnattali e Ricardo Tacuchian.

Nesta entrevista, conversamos sobre o universo musical de Villa-Lobos e Gnattali, o repertório e o ensino de música de câmara no país, assim como os próximos projetos.

CONCERTISTA: Vocês gravaram a obra integral para quarteto de cordas de Villa-Lobos e de Radamés Gnattali. Nos planos musical e da técnica instrumental, como foi mergulhar na música de câmara desses mestres?
Quarteto Radames: Villa-Lobos foi um transformador musical, ele criou uma linguagem própria que fez com que a técnica dos instrumentos utilizados fosse questionada e redefinida. As cordas duplas, as notas muito agudas, os harmônicos e as passagens com alterações sistemáticas muito diferentes à técnica dos estudos europeus me fizeram revisar a minha própria técnica e traçar estratégias para confrontar esse desafio.

Familiarizar-se muito com essa linguagem é fundamental. A aproximação à sua música deve se dar através da linguagem popular e não apenas da europeia. As arcadas e os dedilhados precisam ser testados, muitas vezes, em concerto; e, em vários casos, as cordas duplas devem ser analisadas para serem repartidas entre os intérpretes, de maneira que fique mais confortável para os executantes.

Desde a criação do quarteto, tocamos a obra de Villa-Lobos, e devo dizer que tocar sua música ao longo tempo me ajudou a compreender e esmigalhar as dificuldades técnicas. Musicalmente temos um Goliat, um artista gigante que precisa ser descoberto nas suas diversas camadas. No jeito rápido de escrever que ele tinha, há muitas melodias e passagens incríveis escondidas.

Nós, músicos, estamos muito acostumados a que nos norteiem na partitura, tocando compositores muito mais detalhistas na escrita ou que já foram exaustivamente revisados e corrigidos, como Stravinsky ou Bartok. Porém, nas partituras do Villa, embora ele seja muito comparado a eles, existem erros de escrita. É este o nosso papel principal de intérpretes comprometidos historicamente com o Brasil: ter a paciência de limpar esses erros na escrita e na edição das partes e deixar um material à altura dos outros grandes compositores para os próximos músicos que queiram assumir o desafio de mergulhar na sua obra.

Em Radamés Gnattali, o desafio é principalmente na expressividade. Temos um dos melhores compositores brasileiros considerado “popular” quando, na verdade, teve um aporte significativo no “crossover” da época. O principal foco trabalhando sua obra é conseguir o gingado em conjunto, executar melodias com muitos saltos e, claro, igual a Villa-Lobos, editar os manuscritos para executar a obra.
 
CONCERTISTA: Gnattali e Villa-Lobos transitavam com desenvoltura entre o popular e o erudito. Os quartetos apresentam essa característica dos compositores?
Quarteto Radames: Com certeza. Radamés inclusive nomeou suas primeiras peças para quarteto com ritmos populares: Choro, Seresta, Valsa, dentre outros. Villa-Lobos reproduziu as vozes de uma escola de samba num quarteto de cordas! O popular sempre enriqueceu a música erudita e Radamés e Villa tiveram muita influência na formação : Villa adorava tocar com os “Chorões”; já Radamés era um pianista erudito que, chegando ao Rio, teve percalços na carreira de solista e terminou compondo e arranjando muito, mas muito para o popular.
 
CONCERTISTA: Temos um rico e vasto repertório para quarteto de cordas escrito por compositores brasileiros?
Quarteto Radames: Sim, tem muita coisa e ainda muitas peças inéditas, mas, às vezes, a dificuldade reside no acesso ao material que se encontra em mãos de familiares, que, por excesso de zelo, não facilitam a sua pesquisa e execução.

Nós temos resgatado, revisado e editado bastante material. No nosso repertório,todas as peças brasileiras que executamos passam por esse processo, mas há uma questão financeira envolvida para adquirir o material das famílias, editar, pagar direitos e posteriormente publicar, por isso nem sempre é possível.
 
CONCERTISTA: Como vocês observam o ensino da música de câmara no país? Existe uma boa oferta de cursos nessa área?
Quarteto Radames: Na minha experiência, música de câmara dever ser ensinada por grandes e renomados membros de grupos de câmara, com experiência em execução, que possam transmitir o quê e como se deve ensaiar, como revisar e corrigir dentro de cada estilo. Às vezes, a experiência de palco é mais importante que grandes formações acadêmicas.

Acho que é nessa área que se deve investir, a música de câmara na prática, realizando masterclasses, insistindo em que os festivais também foquem em música de câmara e não apenas orquestra. Eu tive a oportunidade de fazer aulas com o Quarteto Mendelssohn e o Quarteto Emerson e muito do que aprendi com eles aplico até hoje, principalmente no que se refere a estratégias de ensaios. Observo pouca especialização nesse quesito no Brasil.
 
CONCERTISTA: Vocês têm planos para gravar a obra integral para quarteto de cordas de outros compositores brasileiros?
Quarteto Radames: Sim! Sempre! Além de Villa-Lobos e Radamés, já lançamos a obra integral de Tacuchian; a do Guerra-Peixe já está em fábrica, proximamente teremos o lançamento; e a obra do Cláudio Santoro está prestes a ser gravada, o material já foi completamente revisado e editado. Esse projeto da obra de Santoro está sendo feito em parceria com a Rádio MEC e a ABM, que juntas disponibilizaram estúdio e horas de gravação. Não temos dinheiro, mas temos muitos parceiros nesta empreitada!


Publicado na 2ª edição da revista CONCERTISTA.