Paulo Martelli

Traduzir em palavras o talento de um músico é uma tarefa árdua. O que analisar? Técnica? Fraseado? Criatividade? Tudo isso e mais uma mundo de coisas… Entretanto, alguns artistas facilitam essa tarefa. O violonista Paulo Martelli é um deles. Músico sensível, criativo, de técnica apurada, gestual elegante, fraseado cristalino e preciso, Martelli reúne, de forma harmônica, as qualidades dos grandes intérpretes. Basta ouvi-lo por poucos compassos e sua musicalidade revelará que estamos diante de um artista de raro talento.

Martelli nasceu na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, e iniciou os estudos ainda criança com Francisco Brasilino e, posteriormente, se aperfeiçoou com Henrique Pinto e Sérgio Abreu. Cursou Mestrado na The Juilliard School e Professional Studies na Manhattan School of Music (NY). Nessa última instituição, desenvolveu estudos de sistemas de tablatura e recebeu o prêmio Andrés Segovia, uma honraria concedida a violonistas de prestígio.

Em conjunto com o trabalho de concertista, Martelli tem uma respeitada carreira de professor e de produtor cultural. O violonista é idealizador e coordenador do projeto Movimento Violão, uma das mais importantes iniciativas na promoção do instrumento no país. Ana Vidovic, Jorge Caballero, Scott Tennant entre outros instrumentistas de altíssimo nível já passaram pelo palco do projeto. Em 2011, o Movimento Violão foi incluído na programação do Kennedy Center em Washington-DC, nos Estados Unidos. Em 2018, o projeto completa 15 anos. Além de concertos e masterclasses, é realizado o Concurso Movimento Violão, dedicado a revelar jovens talentos do instrumento.

Mesmo com tantos trabalhos em desenvolvimento e uma carreira consolidada como intérprete e professor, Martelli mergulhou no estudo do violão de onze cordas (alto-guitar). O contato com o novo instrumento deu início a um projeto desafiador: transcrever, arranjar e interpretar obras de Johann Sebastian Bach (1685-1750) no alto-guitar. O resultado desse trabalho é uma joia que começa a ser revelada com o lançamento do CD A Bach Recital. Nesse trabalho, o violonista demonstra uma técnica precisa, fluente e coesa, fazendo as vozes em contraponto cantarem com clareza e independência; uma ampla gama de timbres e dinâmicas criam uma atmosfera colorida; e os andamentos permitem uma apreciação introspectiva, calma e contemplativa. Somam-se a isso o virtuosismo, os arranjos engenhosos e a interpretação inspirada, e ficamos em dúvida se essas obras não foram escritas originalmente para o alto-guitar. Paulo Martelli encontrou na música de Johann Sebastian Bach uma morada.

CONCERTISTA: Você já possuía uma carreira consolidada tocando o violão de 6 cordas. Entretanto, em 2004, iniciou os estudos no violão de 11 cordas (alto-guitar). O que o levou a adotar este instrumento?
Paulo Martelli: Tenho uma personalidade musical inquieta e sempre busco novas possibilidades de expressão para minha música. Entretanto, devo esclarecer que ganhei o violão de 11 cordas do luthier paulista Samuel Carvalho em 2004, mas, somente em 2007, decidi de fato abraçar a causa do alto-guitar.

Nunca deixei de estudar e me aperfeiçoar no violão tradicional, porém o alto-guitar me possibilitou uma pesquisa profunda sobre novas possibilidades para a execução da música de J. S. Bach. Assim, o violão de 11 cordas tornou-se um instrumento mais adequado para que eu pudesse melhor traduzir e expressar a linguagem de Bach no violão.

CONCERTISTA: Quais foram os principais desafios técnicos e musicais que você encontrou ao iniciar os estudos no alto-guitar?
Paulo Martelli: Um instrumento com mais cordas oferece muitos desafios técnicos. Além do acréscimo de cinco cordas na região grave, adotamos no alto-guitar a afinação de uma terça menor acima do violão tradicional: o ouvido passa por uma grande adaptação ao executar tudo em um registro mais agudo. A mão direita necessita de muito exercício para alcançar esse número de cordas extras. As aberturas do polegar em relação à extensão dos outros dedos necessitam de muito trabalho para chegar a um domínio satisfatório. Além de tudo isso, creio que o maior desafio do alto-guitar está em apagar as ressonâncias. É necessário manter os baixos soando somente o necessário para não criar dissonâncias ao mudar de uma tonalidade para outra.

A postura também sofre uma grande adaptação, pois o braço deste instrumento é bem mais pesado que o de um violão tradicional. As cordas são mais próximas e a mão esquerda enfrenta maiores desafios com um braço tão largo. Essas são certamente as maiores dificuldades, mas poderíamos enumerar muitas outras ainda.

CONCERTISTA: Luc-André Marcel, em seu livro sobre Bach, considera que o compositor “mais do que ninguém, é um músico da meditação.” Roland de Candé diz que a obra de Bach é uma “soma impressionante dos recursos da imitação polifônica, do estilo concertante e do canto dramático.” Qual a sua concepção da obra de Bach?
Paulo Martelli: J. S. Bach é certamente o maior compositor do Ocidente, ao lado de Mozart e Beethoven. Sua obra sumariza todo um passado da música ocidental ao mesmo tempo que aponta para o futuro.

Eu não tenho a pretensão de ter uma concepção sobre a obra de Bach. Isso talvez só seja possível para regentes e instrumentistas como Gustav Leonhardt, Nicholaus Harnoncourt, Trevor Pinnock, entre outros; os quais, além de instrumentistas, são regentes que trabalham com suas grandes obras e tiveram contato com a maior parte da enorme produção de Bach. No meu caso, sou um mero violonista que executa as obras dele no alto-guitar e me limito ao repertório passível de adaptação para esse instrumento.

Dessa forma, por mais que eu estude ou conheça a obra de Bach, certamente minha visão é compartimentada. Venho inovando com transcrições inéditas e releituras de obras dele já registradas para o meu instrumento. Procuro estar em dia com os avanços da música historicamente orientada, sendo que não descarto intérpretes anteriores a essa tendência. Minhas leituras buscam uma síntese entre essas duas vertentes.

“Penso que o trabalho e o objetivo de um músico deve ser sempre a própria música: a compreensão e o domínio total daquilo que se propõe a estudar e tocar.”

Paulo Martelli

CONCERTISTA: Como você concebe os arranjos e transcrições das peças de Bach? Quais os desafios musicais que encontrou durante o processo de criação?
Paulo Martelli: Os arranjos de obras de J. S. Bach podem ser divididos em quatro grupos:

  • Obras destinadas a violoncelo e flauta, em que o autor utiliza uma técnica de composição muito refinada, dotada de contraponto latente. Nessas obras, ao transcrevê-las para o alto-guitar, é necessário completar as harmonias e escrever o contraponto. O difícil dessa tarefa consiste em realizar um trabalho coerente dentro do estilo barroco, sem destruir a delicadeza do discurso musical de Bach.
  • Obras destinadas ao violino solo. Nas suas três Sonatas e três Partitas, o compositor demonstra total domínio e compreensão do violino, dedicando-lhe obras que expandem suas possibilidades técnicas e expressivas como jamais até então. Para tal, ele faz uso de um contraponto de extrema complexidade, o qual, por vezes, fica restrito às possibilidades desse instrumento. Nesse caso, os arranjos e transcrições devem completar o contraponto e a harmonia do texto, sendo que tudo isso deve estar contextualizado dentro do estilo barroco.
  • Obras destinadas ao teclado. Nesse caso, o contraponto empregado é muito rico e denso. Para torná-lo possível no violão de 11 cordas, é necessário reduzir o discurso. Desta vez, a dificuldade reside em saber o que e quanto pode ser subtraído do texto sem perder o significado proposto pelo autor.
  • Obras destinadas a um instrumento solo e orquestra. Nesse caso, devemos realizar uma redução ainda maior. O melhor é seguir o exemplo do próprio Bach em seus arranjos dos concertos de Marcello e Vivaldi para teclado. Obviamente, no alto-guitar, as possibilidades técnicas são ainda menores que no teclado devido à tessitura do instrumento.

CONCERTISTA: Você tem algum método para estudar as peças de Bach no alto-guitar?
Paulo Martelli: Eu estudo tudo muito lentamente, seja no violão de 6 ou 11 cordas, buscando a compreensão dos movimentos empregados em cada passagem. Utilizo o metrônomo sempre que posso para ajudar a manter o fluxo rítmico. Trabalho minuciosamente na digitação da mão direita e da esquerda. A meu ver, uma execução segura depende de saber dominar ambas as mãos. O conjunto da digitação da mão esquerda somado ao da direita é o que garante uma execução mais próxima à perfeição. Fica aqui uma dica muito importante.

CONCERTISTA: Você foi aluno de Francisco Brasilino, Henrique Pinto e Sérgio Abreu. Como era a metodologia de ensino desses professores? E como foi a experiência na Manhattan School of Music e na Juilliard School?
Paulo Martelli: Iniciei meus estudos musicais em Araraquara, interior de São Paulo, onde tive a sorte de ter um professor apaixonado pela música e pelo violão: o Sr. Francisco Brasilino. Devo a ele a decisão de dedicar minha vida à música e também meu amor ao violão, o qual não foi o meu instrumento inicial. Já o Henrique Pinto foi responsável por uma maior compreensão e refinamento técnico. Com ele aprendi a pensar o instrumento voltado à sonoridade que se podia conseguir dele.
Quando fui estudar fora, já tinha uma visão bem ampla do violão e suas possibilidades. Em grande parte, isso se deu através do meu contato e amizade com o lendário violonista e luthier Sérgio Abreu. Obviamente, só de ficar perto de um gênio do porte do Sérgio, aprendemos imensamente. Ele não foi meu professor no sentido exato da palavra, mas me ensinou por demais durante nossas conversas e nas revisões do meu trabalho como violonista e arranjador. O Duo Abreu figura entre os maiores milagres na história da música, e eu realmente lucrei muito em poder compartilhar meu trabalho com o Sérgio. Até hoje, quando tenho alguma dúvida, é a ele a quem recorro, e os resultados são sempre geniais.

Meus anos de estudo nos Estados Unidos frequentando as duas maiores escolas de Nova Iorque – a Juilliard School e a Manhattan School of Music – sedimentaram meu estudo de música. Foi nesse ambiente de grande ebulição cultural que meus conhecimentos de música erudita e jazz floresceram. Meus professores de violão daqueles tempos, em especial a Sharon Isbin e o Mark Delpriora, foram muito importantes e colaboraram na minha formação. Acredito que tiveram menor impacto que os professores brasileiros, talvez porque eu já me sentisse muito seguro no meu caminho na música naquela época. Porém, tenho muita gratidão a todos os meus mestres, de todas as matérias, não somente às relativas ao violão.

“Procuro estar em dia com os avanços da música historicamente orientada, sendo que não descarto intérpretes anteriores a essa tendência. Minhas leituras buscam uma síntese entre essas duas vertentes.”

Paulo Martelli

CONCERTISTA: No início dos seus estudos, não havia Internet e o acesso a bons livros e métodos era limitado. Hoje a realidade é oposta: existe uma quantidade inesgotável de material disponível para o estudante. Você nota alguma diferença significativa na maneira de estudar música entre essas duas épocas?
Paulo Martelli: Sim, há uma grande diferença e penso que pode ser para pior em alguns casos. Sinto que a facilidade de acesso à informação tirou um pouco da magia da sua busca. A quantia absurda de material disponível, muitas vezes, confunde e não ajuda os novos talentos a escolher o melhor caminho. Além disso, nem sempre as referências propostas pela mídia são as ideais musicalmente falando. Porém, não sou saudosista e adoro a evolução tecnológica. Eu particularmente lucro com essa facilidade de acesso à informação e isso me ajuda muito. Uma das grandes vantagens é não ser necessário estar num determinado lugar para se aprender ou desenvolver. Gosto da possibilidade de ficar isolado por um período de tempo, mantendo também a possibilidade de estar “ligado” nas novas tendências musicais no mundo. Como tudo nessa vida, essa revolução tecnológica também tem dois lados. Devemos aprender a desfrutar sempre do melhor deles.

CONCERTISTA: Como você trabalha o desenvolvimento técnico e a escolha do repertório de seus alunos?
Paulo Martelli: Geralmente oriento alunos que já tocam. Meu trabalho consiste em polir a técnica e a compreensão musical. A priori, eu trabalho a técnica visando desenvolver as possibilidades dos meus pupilos ao máximo. Quando é necessário, é técnica pura, mas, na maioria das vezes, trabalho a técnica já empregada no repertório escolhido. Utilizo muito a escola de Carlevaro, mas sem ser extremista. Quanto à escolha do repertório, eu procuro ajudar o aluno a pensar naquilo que se encaixa melhor com o seu temperamento e seu nível técnico atual. O objetivo é sempre desenvolver a técnica e a compreensão musicalmente. Emprego um bom tanto de análise estrutural e harmônica nas aulas. Com esse método, tenho conseguido excelentes resultados.
 
CONCERTISTA: Você venceu vários concursos, entre eles o Jovens Concertistas Brasileiros (RJ) e o Young Artists Competition (NY). Hoje você promove o Concurso Movimento Violão. O que você pensa sobre os concursos? Eles são uma parte importante na carreira de um músico?
Paulo Martelli: O concurso pode ser considerado um mal necessário, pois, na maior parte das vezes, há uma inversão na compreensão dos estudantes de música sobre a sua real função. Penso que o trabalho e o objetivo de um músico deve ser sempre a própria música: a compreensão e o domínio total daquilo que se propõe a estudar e tocar. Quando esse trabalho é realizado com seriedade e os objetivos são atingidos, os concursos acontecem como uma consequência disso. Estudar visando ao concurso e não à música é uma inversão perigosa que geralmente leva à frustração. Eu fiz alguns concursos e fui até feliz nos resultados, mas, quando percebi que minha relação com a música era afetada negativamente por isso, parei e nunca mais competi. Creio que, quando um artista tem o que comunicar e trabalha seriamente para isso, ele será ouvido cedo ou tarde. Promovo o Concurso do Movimento Violão, muito mais por me encontrar numa posição em que posso ajudar os novos talentos a ter uma maior exposição. Creio que é minha obrigação, como diretor do Movimento Violão, criar oportunidades para a nova geração de violonistas.
 
CONCERTISTA: Como você se prepara para os concertos? Tem algum ritual antes de subir no palco?
Paulo Martelli: Os concertos são os próprios rituais para mim. Eu adoro tocar em público, especialmente quando estou em boa forma. Eu penso no repertório como um todo e estudo minuciosamente cada obra. É claro que passo por um tremendo estresse antes de um recital ou concerto, porém, quando subo no palco, essa sensação é substituída pela vontade e necessidade de fazer e levar a melhor música possível ao meu público. Antes de subir no palco, mesmo não sendo religioso, costumo me benzer e pedir proteção. Afinal, eu entendo minha vida de músico como uma missão, sobretudo depois que escolhi morar e trabalhar no meu país.
 
CONCERTISTA: Gostaria que deixasse uma mensagem aos jovens que sonham em viver da profissão de músico.
Paulo Martelli: Música é uma das belezas maiores desta vida. Ela exige seriedade, dedicação e muita disciplina. Minha mensagem aos jovens que se propõem a seguir esse caminho se resume a duas palavras: perseverança e seriedade.

Deixe um comentário